segunda-feira, 22 de junho de 2020

Crítica descabida - MARCOS LISBOA

Crítica descabida - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 21/06

Banalizando a banalidade do mal

Em 1999, o prefeito de Nova York tentou impedir o Museu do Brooklyn de realizar exposição com obras polêmicas, incluindo uma que ofendia a sensibilidade religiosa de cristãos.

O museu não cedeu, e o prefeito cortou as verbas concedidas pelo município. Floyd Abrams liderou a defesa do museu perante a corte federal. O resultado foi uma vitória acachapante.

O governo não tem o direito de censurar trabalhos que considere moralmente impróprios ou que agridam à religiosidade. Nenhuma autoridade pode determinar o que seria aceitável em temas de opinião. As verbas para o museu deveriam ser integralmente preservadas.

Tão importante quanto a defesa feita por Abrams foi o que ele se recusou a fazer. Antes do julgamento, ele tomou conhecimento de um trecho do diário de Goebbels, que assumira a gestão da cultura em razão de uma exposição que desagradara a Hitler:

"Caso os vienenses contestem, todos os subsídios do Reich serão cortados. Isso, claro, significa a morte da vida cultural de Viena".

Abrams pensou mencioná-lo como exemplo de censura exercida pelo autoritário de plantão. Concluiu, porém, que a analogia com o prefeito seria obviamente falsa em razão das circunstâncias e prejudicaria a defesa do museu.

Na última semana, Mansueto Almeida anunciou sua saída da Secretaria do Tesouro. Alguns aproveitaram para criticá-lo por ter aceitado trabalhar neste governo e resgataram uma expressão de Hannah Arendt: a banalidade do mal.

Arendt, porém, utilizou-a ao escrever sobre o julgamento de Eichmann, o burocrata anódino que organizara o transporte de judeus para campos de concentração.

Podemos repudiar as manifestações do presidente, mas não a democracia que o elegeu. Muitos de nós jamais cogitariam trabalhar neste governo. Outros agem de forma diferente para cuidar da coisa pública. Tema de opinião, não de legalidade.

Mansueto é um servidor público cioso do seu ofício e aberto ao contraditório. Sua serenidade e meticulosidade têm sido essenciais para o debate sobre os dilemas da economia.

Impecavelmente, ele consegue relevar as críticas virulentas e sempre convida ao diálogo, explicando com cuidado os dados e as opções de política pública, mesmo que na contramão do discurso oficial.

O Tesouro Nacional tem alertado sobre problemas que outros prefeririam ignorar. Não há notícia de artifícios contábeis que escondam da sociedade a gravidade das contas públicas, ao contrário do que ocorreu em gestão passada. A cada um o seu quinhão pelos atos que pratica.

A liberdade de expressão deve proteger até mesmo a crítica descabida. O único risco é tornar seus porta-vozes comparáveis ao governo que desprezam.

domingo, 21 de junho de 2020

5 Lições Que Harry Potter Me Ensinou Sobre Liberdade. De Daniel José.


Um dos fatos de minha vida é que até iniciar meus estudos no Insper minha bagagem cultural não era muito grande: lembro quando um colega de sala me perguntou o que eu tinha achado do “último filme do Tarantino” e eu  não fazia ideia do que ele estava falando.

Porém, ao longo da minha infância, tive aoportunidade de ler os livros da saga Harry Potter, com os quais aprendi valiosas lições e que, de alguma forma, contribuíram para moldar o que penso sobre liderança e liberdade.

Afinal, apesar de reconfortante, a história desse mundo mágico, às vezes, não cumpre o objetivo de servir como válvula de escape. Muitos dos ensinamentos presentes na obra de J.K Rowling devem-se ao fato de estes serem provenientes de situações que se assemelham à vida real.

Como grande fã, enquanto organizava meus livros durante a quarentena, senti imensa saudade da saga ao revê-los na estante. Por esse motivo, agora, compartilho com vocês 5 lições que Harry Potter me ensinou sobre liberdade.

[Uma das leis da internet é que após mais de uma década de fim da saga não é spoiler, mas para quem não desfrutou ainda da obra, aqui vai o aviso: o texto contém algumas exposições da narrativa].


1)  O valor da igualdade sob a Lei

Na terceira obra, o grande vilão da vez anunciado é Sirius Black. No decorrer dos capítulos, porém, descobrimos sua inocência e simpatizamos com ele, ao ponto de, ao final da quinta obra haver um pouco de suor nos nossos olhos diante do que acontece com ele.

Mas, talvez uma das minhas primeiras compreensões a respeito dos pilares do direito criminal veio daí: os princípios da ampla defesa e contraditório, do devido processo legal, da presunção de inocência… tudo isso foi arbitrariamente negado a Sirius Black. Dessa forma, o personagem passou 12 anos na cadeia por um crime que não cometeu.

Assim como o padrinho, Harry também sofre pela falta de tratamento igualitário sob a Lei no quinto livro, quando vai a julgamento por um ato de legítima defesa. O horário de sua sessão é modificado sem aviso prévio para dificultar que seu advogado não consiga comparecer. Além disso, o discurso do Juiz mostra o absurdo de o réu ser o responsável pela apresentação de provas quanto à sua inocência, e não o contrário.

Lembro de ter raiva ao ler essas páginas, algo natural diante de injustiças. E, nesse sentido, tanto no tribunal quanto em outras ocasiões ao longo da trama, somos alertados sobre a influência de grupos de interesse dentro do governo pela autora e da importância de imparcialidade, isonomia e integridade na administração pública.

2) O perigo da doutrinação ideológica nas escolas

Para controlar o conteúdo ministrado em sala de aula, o primeiro-ministro, Cornélio Fudge, determina a nomeação de Dolores Umbridge como professora de uma das matérias mais importantes em Hogwarts. De acordo com eles, tudo está sob o controle do estado e os estudantes não precisam de recursos para garantirem a própria segurança.

Mais tarde, ela se torna diretora da escola e, a partir daí, vários decretos são baixados, cerceando as liberdades individuais dos alunos. Descobri mais tarde que algumas dessas medidas se assemelharam ao Macarthismo e também às medidas impostas no Brasil durante a ditadura militar: Umbridge, por exemplo, criou o Esquadrão Inquisitorial, cuja função era fiscalizar e denunciar o mau comportamento de colegas.

No entanto, não é possível evitar tragédias com narrativas ideológicas ou negando dados e evidências. Assim, a saga de Harry Potter ensina sobre a importância de um governo limitado, da liberdade de pensamento e da educação em prover os insumos necessários ao exercício da cidadania.

PS: embora reconheça que há problema de viés ideológico no ensino brasileiro, não creio que este seja o maior problema, e não sou a favor do Escola Sem Partido. Comentei já nesta entrevista no Pânico.

3) A importância da liberdade de imprensa

A partir do quinto livro, vemos o Ministério da Magia manipulando a opinião pública, por meio do Profeta Diário, o jornal de maior circulação na sociedade bruxa do Reino Unido. Inclusive, o próprio primeiro-ministro lança mão de sua influência para negar a existência de um perigo iminente, a fim de manter-se no poder.

Consequentemente, há demonstrações civis de apoio a Fudge e ataques diretos a Dumbledore e Harry, fomentados pela narrativa do governo.

Já no último ano, quando o regime assume suas tendências mais autoritárias, veículos de comunicação alternativos, como o Pasquim, são censurados. Durante a guerra que se inicia, estações de rádio clandestinas tornam-se a única fonte confiável de notícias. 

Em suma, esses fatos demonstram como a liberdade de imprensa é a pedra angular da democracia.

4) A necessidade de combater o preconceito

Muito além de bruxos e animais fantásticos, o mundo da saga contém outras inúmeras criaturas racionais, dotadas de capacidades idênticas a dos humanos, com ou sem poderes mágicos. Mas, a despeito de suas semelhanças, alguns grupos minoritários são explorados, devido às suas diferenças físicas.

Diante dessa realidade, em seu quarto ano em Hogwarts, Hermione cria A Frente de Libertação dos Elfos Domésticos, que trabalhavam como escravos, inclusive, na escola. Essa é uma importante lição, pois, para ter sua causa reconhecida, ela precisa enfrentar os próprios amigos, que encaram a situação com conivência, argumentando que isso faz parte da sociedade mágica há anos. E, serve como exemplo de determinação no combate ao preconceito.

O cerceamento de direitos aos Elfos já havia sido retratado no segundo livro, quando Harry ajuda um deles a escapar de seu senhor. Todavia, apenas dois anos depois, a autora decidiu expor como esse preconceito era enraizado nas Instituições. Ou seja, não se tratava de um caso isolado, assim como acontece na vida real aqui no Brasil.

Em suma, o próprio vilão, Voldemort, e todos os seus seguidores difundem a ideia de pureza racial, que exclui também bruxos nascidos de pais comuns, denominados “sangues-ruins”. E, a importância do combate a essa corrente é exposta várias vezes ao longo da série.

5) As características de um verdadeiro líder

Quando todas as Instituições começam a ruir devido à infiltração de membros aliados a Voldemort, cujo intuito é assumir o controle sobre a sociedade civil bruxa, Harry toma a frente do treinamento dos jovens combatentes, criando a Armada de Dumbledore. Afinal, o momento era oportuno e havia a necessidade de que alguém assumisse esse papel.

A lição aprendida: um verdadeiro líder não espera que tarefas lhe sejam delegadas.

Entretanto, apesar de ser o herói da história, outras personagens também demonstram comportamentos protagonistas ao longo do tempo. Um exemplo foi Hermione, que atua como liderança na caça às horcruxes – artefatos que precisavam ser destruídos para que eles vencessem a guerra. Ou seja: trabalho em equipe! Algo, inclusive, muito presente desde o primeiro livro da obra.

Da ficção à vida real, a liberdade é o sustentáculo da evolução humana

É claro que a possibilidade de resolver vários problemas com uma varinha mágica ajuda muito, mas, grande parte do triunfo do bem contra Voldemort deve-se à cooperação e à organização de vários agentes e diferentes personagens nesse sentido.

Por fim, à medida que os três amigos adquiriam mais conhecimentos sobre magia, mais responsabilidades eram incumbidas a eles com o passar dos livros. Assim também funciona a liberdade. Afinal, não é possível ser livre, sem ser responsável pelas consequências de seus atos.

Se Harry Potter me rendeu algumas horas de distração em meio ao caos da pandemia, na minha infância e adolescência me proporcionou algumas lições sobre liberdade e liderança, pelas quais sempre serei grato.

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