terça-feira, 2 de junho de 2020

De Rodrigo da Silva

Faz dez anos.

Em pensar que tudo isso começou com uma bolinha de papel. E não qualquer bolinha: uma bolinha de papel dessas amassadas pra ridicularizar, tacada na careca de um sujeito só pra provocar aquele som característico das pequenas agressões humilhantes.
Ploft.
Lembro como se fosse antes de ontem. Faz uma década.
O JN chamou o Ricardo Molina pra periciar a gravação do atentado. Sete minutos de JN, uma fortuna. O Molina periciou quadro a quadro.
Por uma noite, o Brasil parou em observância ao movimento de um objeto tacado numa careca. A gente ainda levava a sério esse tipo de coisa; era um escândalo.
A gente, vírgula. Tinha quem rejeitasse: militante.
"PIG! PIG!", a blogosfera governista não se conformava. O Paulo Henrique Amorim cuspia, babava, salivava.
Já falavam em golpe nessa época. "Partido da Imprensa Golpista", diziam.
O dedo em riste denunciava a patifaria. A escalada do absurdo crescia em progressão geométrica na pré-história das redes sociais.
O Brasil parou pra discutir se era errado tacar um objeto num adversário político.
No palanque, Lula não perdoava o papel do sujeito alvo da tal bolinha de papel: "Ontem, venderam o dia inteiro que esse homem tinha sido agredido”. Era cera: "uma mentira mais grave do que a mentira daquele goleiro Rojas”.
E então, descobriram que havia mais coisas do que os militantes contavam. Hoje a gente chama de fake news. Naquele tempo o nome era mentira.
Descobriram também um rolo de fita adesiva jogado, além de quinze minutos de cotoveladas na multidão ao redor daquele homem careca.
Tacaram pedras, mastro de bandeira.
Os cinegrafistas das principais emissoras foram forçados a se afastar do tumulto. Uma repórter da Globo levou uma pedrada. O vídeo que entrou pra história teve que ser gravado num celular - e um celular há uma década tinha uma câmera pior que a da Tekpix.
Pra militância, não mudou nada. Trataram tudo como uma bolinha de papel. Fecharam os olhos, trancaram a respiração, taparam os ouvidos. Até hoje tem quem menospreze.
A verdade é que a gente nunca mais foi o mesmo depois daquele dia. Tava liberado sair da verbalização, do campo das ideias, do debate intelectual. Os adversários viraram inimigos. O monstro fugiu da jaula.
Começa com uma bolinha de papel. Termina numa facada.
E então a gente nem se lembra mais do tempo em que era possível sentar pra conversar sobre política sem querer furar os olhos de quem pensa diferente.
O Marcelo Dourado venceu o BBB naquele ano. Parece irrelevante, mas o Brasil também parou naquela final. Foram 154 milhões de votos. O Brasil não tinha 154 milhões de eleitores em 2010. Não dá pra subestimar esse fenômeno.
A raiz do bolsonarismo já estava todinha ali, esperando pacientemente para conquistar o poder. Dourado era o underdog, o anti-herói, o politicamente incorreto, o anti-BBB. Tinha uma suástica tatuada no braço. 
Seu bordão era "força e honra". “Heterossexual não pega aids”, dizia.
O jornal Extra noticiou o acontecimento:
“Favorito no Big Brother 10, Marcelo Dourado é um fenômeno também na internet. Na maior comunidade de apoio ao lutador no Orkut há quase 700 mil membros. Na página principal, Dourado foi parar no cartaz do filme “Todo poderoso” no lugar de Jim Carrey. Nas outras dezenas de comunidades, ele chega a ser chamado de mito por seus fãs.”
Isso mesmo: mito.
Dourado apareceu no palanque antagonizando um homossexual chamado Dicesar. Em pouco tempo foi acusado de homofóbico.
"Estava simplesmente no meu direito de não ficar imitando gay, de não dizer que tenho uma diva dentro de mim. Tinha o direito de dizer não. Por isso, as pessoas se identificaram comigo".
Jean Wyllys, vencedor da edição número cinco, reagiu à contenda dando nome aos bois: fascismo.
"Marcelo Dourado, ao se opor explicitamente à 'licenciosidade' dos coloridos, emergiu como o líder de caráter fascista, que satisfaz a vontade geral de ordem e segurança."
Dourado respondeu atravessado. Disse sofrer de uma nova fobia do século vinte e um.
“Se eu chamar alguém de v*ado, sou acusado de homofóbico. Agora, podem me chamar de líder fascista. Qual a diferença? Eu ser chamado de fascista passa batido. Ninguém, nem o Ministério Público veio me defender. Isso é um preconceito danado. Para mim, isso é heterofobia."
Por que ele havia vencido a edição? A resposta estava na ponta da língua:
"Falava de valores que as pessoas querem resgatar, como honra e lealdade. Muita gente não se identifica com essa idéia de homem moderno que faz tanta coisa em função da estética. Existem mulheres e homens que acham que o legal é ser mais tradicional mesmo. Homem é homem. Mulher é mulher. Existem valores perdidos. Não estou falando de opção sexual. Liberdade não é oba-oba."
Faz dez anos, uma década. A gente viu tudo isso nascer na televisão, quadro a quadro, com direito à perícia. Já estavam todos os ingredientes ali. 
Gente menosprezando agressividade política, gente reclamando de politicamente correto. Gente condenando a ascensão de um "líder de caráter fascista", gente chamando underdog de "mito".
Nunca uma bolinha de papel e um reality show disseram tantas coisas sobre o futuro de um país.

Um comentário:

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